Cuidado: mau humor contamina
Muito além de um traço negativo de comportamento, o mau humor crônico é uma doença e atinge cerca de 350 milhões de pessoas no mundo
Por Talita Boros
talita.boros@folhauniversal.com.br
Maria Clara*, de 29 anos, tem fama de arrogante e antipática. No trabalho, não se dá bem com ninguém. Em casa, ignora a presença da família e faz questão de passar o tempo livre que tem sozinha, trancada no quarto. Desde que se lembra, sempre foi assim. "Nunca fui de outro jeito. Minha mãe diz que eu era uma criança feliz até os 12 anos e que depois mudei. Não tenho amigos, nunca tive um namorado. De forma geral, não suporto as pessoas", conta. Muito além de um problema comum de humor ou relacionamento, Maria Clara faz parte do grupo de pessoas que sofrem de distimia, também conhecida popularmente como mau humor crônico. Em todo o mundo, pelo menos 5% das pessoas sofrem dessa patologia, a maioria do sexo feminino. E, assim como a maior parte dos transtornos psiquiátricos, a distimia causa prejuízos que vão muito além da saúde e atingem toda a vida familiar, social e profissional dos portadores.
"Já fui demitida por causa da doença. Não conseguia trabalhar em equipe e isso era muito importante na empresa. Discutia com todos e acabei indo para o olho da rua", conta Maria Clara, que é formada em administração, e hoje esconde no atual emprego sua condição de saúde. O psiquiatra Eduardo Aratangy, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, explica que justamente o prejuízo causado pelo humor é o que diferencia um distímico de uma pessoa apenas conhecida como "rabugenta". "As pessoas que convivem com um distímico descrevem esta pessoa como mal-humorada, pessimista e sensível à frustração. Conforme a gravidade do quadro podem ocorrer prejuízos no rendimento profissional, nas interações sociais e nos relacionamentos pessoais", afirma.
De acordo com Antônio Geraldo, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, a distimia envolve sintomas crônicos e de longa duração – por mais de 2 anos – que não incapacitam, mas impedem o indivíduo de funcionar bem ou de se sentir bem. A patologia é considerada um tipo de depressão, assim como outros transtornos de humor como a bipolaridade. O doente, diferentemente do mal-humorado eventual – que é estimulado por um acontecimento negativo – está sempre de cara feia, independentemente de ocorrer algo positivo ou negativo. Enquanto a maioria das pessoas se diverte e dá risadas numa festa, por exemplo, o distímico fica no canto, emburrado e deslocado. Segundo Geraldo, não se sabe as causas exatas que levam ao aparecimento da doença, mas existe uma combinação de diversos fatores – genéticos, ambientais e de desenvolvimento.
O psiquiatra Aratangy destaca que os distímicos também podem ser mais propensos a desenvolver dependências químicas, como o alcoolismo e o tabagismo. "Outra informação importante é que até 95% dos doentes apresentarão episódios depressivos mais graves durante a vida como, por exemplo, a depressão pós-parto", completa. Não é fácil diagnosticar a distimia, doença que muitas vezes é confundida com uma depressão maior, pela semelhança dos sintomas. De qualquer forma, quem desconfia que sofre do transtorno deve procurar ajuda especializada, através de um psiquiatra ou um psicólogo. O tratamento, segundo Aratangy, se baseia na psicoterapia, mas pode envolver medicações antidepressivas.
Mas, para quem pensa que está livre dos problemas, os especialistas destacam que o mau humor eventual – não patológico – também traz muitos prejuízos. Recentemente uma pesquisa feita pela Universidade de Estocolmo, na Suécia, mostrou que danos à saúde de funcionários que têm chefes mal-humorados podem ser enormes. Segundo o estudo, o risco de sofrer um ataque cardíaco é 25% maior entre trabalhadores que possuem um chefe rigoroso demais, injusto e desmotivador. Além disso, está mais do que provado que, em casa ou no ambiente de trabalho, o mau humor é contagioso e prejudica todas as pessoas daquele ambiente.
Sorria!
A escritora Conceição Trucom, especialista em bem-estar e qualidade de vida, afirma que o mau humor limita a capacidade de enxergar o que está ao redor, o futuro e a vida. "Aquela noção intuitiva de que a pessoa mal-humorada tem uma visão limitada da vida, ou pelo menos das coisas que a cercam, foi comprovada por neurocientistas da Universidade de Toronto, no Canadá, mostrando mais uma vez como as emoções filtram a informação sensorial que chega ao cérebro", afirma ela.
No estudo, os pesquisadores mostraram aos participantes uma série de imagens que os deixavam contentes ou irritados. Na etapa seguinte, exibiram figuras compostas, em que um rosto, que ocupava a posição central, era rodeado por paisagens. A instrução era para que eles se esforçassem para manter o foco na face, coisa que os participantes mal-humorados conseguiram fazer facilmente. Em compensação, os que estavam de bom humor tiveram muita dificuldade para não prestar atenção nas paisagens apresentadas ao redor. A conclusão, segundo a especialista, é que os bem-humorados buscam enxergar o todo, local onde certamente se encontram possibilidades de soluções.
Há alguns anos, afirmar que existia uma vinculação direta entre o humor e a boa saúde não era aceitável dentro da comunidade científica. Hoje, segundo Conceição, a medicina em geral e a psiquiatria, em particular, estudam muito a importância do bom humor, dos bons sentimentos e dos pensamentos positivos na qualidade de vida e saúde das pessoas. Sobretudo, na prevenção de doenças graves, como o câncer e as cardiovasculares. "O bom humor aumenta o ânimo, deixando a pessoa com mais fé, esperança, perspectivas e espirituosidade", explica.
A especialista destaca o riso – considerado a expressão mais explícita do bom humor e do positivismo – como o mais importante aliado e estímulo na luta contra o mau humor. "Quando se fala em risos, não estamos falando da pessoa que conta anedotas e ri à toa. O bom humor, na verdade, diz respeito a ‘rir-se’ das coisas do cotidiano. Das incongruências do dia a dia, da comédia da vida diária, das brigas, dos pequenos problemas da rotina e até mesmo dos tempos difíceis que passamos", afirma a escritora.
Segundo pesquisas citadas por Conceição, o riso tem importante papel na redução dos hormônios envolvidos na fisiologia do estresse, melhorando a imunidade e reduzindo a pressão do sangue. "As pessoas que sabem se divertir e rir são geralmente mais saudáveis e capazes de sair de situações de estresse com facilidade", diz a especialista. Segundo ela, a redução da liberação dos cortisóis e de adrenalina (hormônios do estresse e do envelhecimento precoce) é desejável, já que, como se sabe, seu excesso desencadeia o desenvolvimento de infecções e doenças.
* Maria Clara é nome fictício: a entrevistada pediu para não ser identificada
Folha Universal
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